Os dançarinos

Acima de tudo e antes de tudo, os dois dançam.
Mesmo quando ela acorda suando de madrugada
Assustada com um pesadelo envolvendo naves e explosões
E mente
Ainda assim no espaço eles dançam como se a gravidade fosse
Só mais uma das leis de merda inventadas pelos homens

A dança não
Ainda que sem música e sem permissão
E sem ritmo de ambas as partes
E sem vontade até
A dança segue alheia a protestos e cartazes

Os dois dançam sorrindo e chorando às vezes

Você e ela são ruins demais nisso, padawan.

a loteria

como saber se as notícias de pessoas que ganharam a mega sena em bolões com os colegas da firma ou casais apostando por anos no mesmo número não são armações da lotérica pra gente continuar apostando cegamente confiando que a sorte muda em plena virada de ano?

hoje recebi um convite pra um concurso literário da faculdade. no regulamento tá escrito que parentes dos membros do corpo de júrados e os próprio jurados não podem participar. mas também tá escrito o júri será escolhido pela reitoria da faculdade, sem divulgar quem são os tais decididores (essa palavra existe?).

como saber o que a gente poderia ter sido? vai ver as faíscas de brilho que enxergamos em coisas que são cem por cento opacas só são artimanhas do nosso cérebro semelhantes as que nos fazem continuar apostando nos mesmos número do mesmo jogo. ou vai ver tem mesmo uma profundidade cintilante embaixo da poeira de um cérebro mal utilizado. cruel como os sorteios da loteria.

sei lá. isso é só um teste.

O ouriço

Anomalia de um sistema que se revela grotesco e do qual zombo suavemente, todo dia, num foro íntimo que ninguém penetra
Muriel Barbery, em A Elegância do Ouriço

Hoje cheguei no trabalho querendo compartilhar tanta coisa que já tinha acontecido nesse começo de dia. Parece difícil pensar em algo que aconteça no borrão cinza do tempo que envolve o despertar até o momento de sentar a bunda na cadeira do escritório. Apesar de que, se refletirmos sobre o assunto, o passar das horas também é muitas vezes só o passar das horas.

A sensação do peso dos três cobertores que me impediam de levantar mais cedo outra vez. O ralo do chuveiro entupido há dias e que conseguiu transformar o box numa banheira suja. O final de um livro subestimado por mim mas que me provocou um acesso de choro no metrô. Quantas sensações, reflexões e emoções couberam nessa hora e meia? E porque é tão difícil guardá-las? Tudo é fagocitado tão facilmente ao chegar aqui ou em qualquer outro lugar e perceber que não há outra pessoa que tenha sentido – ou que se importe com coisas assim – os pés molhados frios demais ou que tenha chorado a morte de alguém que nem existe.  Ou melhor, talvez alguém tenha sentido também, mas esses lampejos caem no inevitável buraco negro do cotidiano que não aceita desvios. Tudo que a cabeça pensa nos poucos períodos em que não precisa se esforçar, apenas deixar o corpo fazer o trabalho de deslocamento, tudo é desconstituído e perde o significado minuto a minuto, numa inevitável contagem regressiva rumo ao nada.

Até que terminamos assim: parte do escritório, parte da redação, parte da fábrica, parte do trânsito, parte da multidão no trem que tenta voltar pra casa. Parte do povo cansado que só quer dormir e adiar os afazeres pra amanhã. E o amanhã…

Valentino

Eu não queria, mas eu fiz uma balada pra quem não me quis.

Privado

Ai, a insônia. São 02 da manhã e eu tô acordada. Tá, e daí?
Já sei que vou acordar amanhã puta por ter dormido pouco demais, que vou ficar balançando a cabeça por causa de pequenos mergulhos no sono se por um milagre eu sentar no metrô.
E a noite muito provavelmente, esse mesmo ciclo vai se repetir, com o agravante de que eu tenho roupa pra lavar. Menos mal.

Mas sei lá. Eu gosto de você. E preciso muito te falar isso, não como quando eu falo brincando ao te ouvir perguntando isso pela milésima vez num tom de quem diz “você não me deixa em paz”. Eu gosto de você e não quero que você saiba disso pra dizer que gosta também – cá entre nós, é bem claro que não é isso que vai acontecer. Quero que você escute pra entender que não quero você por perto.

Todas as brincadeiras, sorrisos e conversas não são pra mim só brincadeiras, sorrisos e conversas. Tudo é motivo pra minha cabeça trabalhar, imaginar que é recíproco o que eu sinto. E tudo isso me deixa ainda mais brava por ser o clichê do século: a mina/o cara que gosta do/da filho/filha da puta.

Entende? Eu gosto de você, sai de perto de mim, você só vai me fazer mal. E se me fazer mal não te importa, pensa que eu sou uma maluca que gosta de você. E quem quer alguém maluca e clichê pegando no pé por perto?

Me erra. Esquece a zueira. Queria muito ser uma voz na sua consciência dizendo “e aí cuzão, vai ficar aí parado?”. Mas eu só tenho força pra dizer: fique parado. Sai. Eu preciso de paz.

Quantas situações hipotéticas eu criei. Quantas vezes eu não achei que agora ia. E quantas vezes eu já sabia que não ia ser. Sabia que era só mais uma que tava lá mesmo e era o que tinha pra hoje. E mesmo assim abri o olho pra mudar de posição na cama e dei uma espiada do meu lado pra aproveitar porque vai que era a última vez que eu te via ali. E um dia foi mesmo. Logo o pior de todos. Logo o dia em que não deu pra dormir mais tempo. Logo o dia em que você não pegou minha mão dormindo e entrelaçou os dedos nos meus, num gesto que jamais repetiria sóbrio.

Eu bebo demais, não sou levada a sério, não tenho não me toques na hora de sair só por sair. Já até pensei que isso talvez não te deixasse ver que porra, eu gosto de você. Mas não é isso, você sabe. E gosta de me ter por perto. Ter alguém pra comer quando nada melhor estiver por perto. Tão cômodo quando a gente sabe que é só chamar que vem. Eu gosto de você, e não aguento mais. Não acho que levar um não vai afastar de vez esse angu de caroço, mas pelo menos vai me fazer ter a certeza de que não. Não.

Diz com todas as letras que não quer nada e sai de perto. Mas não fica lembrando das conversas que a gente teve bêbados antes de dormir. Não fica insistindo pra eu lembrar do que a gente disse um pro outro como se fosse a coisa mais engraçada do mundo. Não me dê tapas na coxa quando eu tiver sentada, não desamarre meu cadarço e não se surpreenda por eu gostar de filmes de menininha. Não me mostra como seu cabelo fica quando o vento bate deixando ele de lado e não me conta que você tem vontade de ir na Sala São Paulo. E principalmente, por favor, não enrola almondegas comigo.

Quando eu tiver toda simpática e você souber que eu quero – porque eu sempre vou querer -, lembra do quanto eu gosto de você. Daí, eu já sei, você vai se afastar. E é justamente isso que eu preciso. Sai.

Bigorna

O problema é o sapato que você teima em desamarrar. E por que diabos você repara no meu  peso, nas minhas roupas e no meu corte de cabelo? Você sabe que é cruel, e talvez por isso mesmo continue. Deve ser minha cara, devem ser as minhas mãos que não disfarçam a ansiedade e eu não sei nem como gesticular perto de você, a posição da boca pra não parecer que ela tá te chamando, se esforçando pra manter uma conversa normal e civilizada. 

E porque você faz questão de participar dos meus assuntos? Nem somos tão amigos assim… Deve ser porque você sabe que eu gosto. Será que sabe? Com tanta gente no mundo, logo você, um trouxa… Um cara sem sal…

Depois de braços melhores, depois do entrosamento e do aconchego que eu nunca senti nos nossos encontros embriagados, porque essa maldita tremedeira? Dias, semanas, até meses bem. Mas, às vezes, basta só uma noite pra todo um trabalho árduo ir por água abaixo. E o “e se?”, alimentado só por mim, passa a tomar conta da minha cabeça de um jeito tão ridículo que me faz pensar em você bastante antes de dormir só pra ter mais chances de sonhar com a gente.

Uma babaca completa. Mas não é isso que somos todos nós?

Geração perdida

Somos uma massa falida. O teste, o intervalo entre gerações passadas e o que vem amanhã. E o que vem amanhã? Será que vem uma máquina de fazer carinho? Já me contaram até que os dedos vão encurtar porque com as pontas deles vai dar pra fazer tudo. E pra entrelaçar as mãos?


Sou uma perdida abraçando com gosto a causa da juventude transviada. Dos que não valem nada.  Me agarro a um tempo que não vivi pra justificar minha inconsequência e prefiro fechar os olhos pras preocupações. Deixa pra outra hora…  Uma perdida num texto perdido, juntando fragmentos de pensamentos que são só lampejos no meio da correria que mata qualquer processo criativo.

É por isso que eu topo qualquer desvio no caminho. Prefiro garantir a cerveja na geladeira do que um creme novo pra passar no rosto. Não perco a oportunidade de fazer algo que resulte em uma ressaca moral que se mistura à ressaca normal. Não me arrependo. Esse é meu grito de liberdade. Dias conturbados entre fluxos, processos, textos, pautas, sono, viagens de metrô e noites mal dormidas.

Somos uma massa falida. E o que vem amanhã? Tanto faz…

Pílulas de amor

Seis da tarde e o tempo de São Paulo mudou em questão de minutos, como sempre. A névoa e o frio nem são tão perceptíveis no embolado de gente esperando o trem na plataforma da estação. Ali, fones de ouvido, gente falando no celular, alguns tentando ler e o guardinha ficando maluco tentando impedir as pessoas de ultrapassarem a linha amarela. E uma mulher, devia ter lá seus 29 anos, de cabelos cacheados, óculos e uma estrutura atarracada digitava o seguinte SMS: “Só posso parabenizá-la por ter conquistado seu coração”.

*

Quase na hora de dormir, depois daquele lenga-lenga doído que se arrasta pela noite toda, ele ofereceu metade do sofá. Vai que era pra testar se conseguiam mesmo deitar juntos. Ela, sabendo que não era magrinha, deitou e perguntou.

– Tô te esmagando aí?

– Não, eu sou de dormir em cantinho.

Foram para a cama e a conchinha funcionou. Com o sono agitado, se desvencilhavam e mudavam de posição. Mas, vira e mexe estavam grudados: pelas costas, pelos ombros, pelas pernas. Ela também era de cantinho. Ambos encolhidos em seus cantos que, no fim, eram demarcados no começo do corpo do outro. Tiveram que se separar. Incompatibilidade.

*

Era um casal impestuoso. Naquela manhã, pegaram o metrô pro trabalho. Na estação Sacomã, ainda sonolentos, encostavam-se um no outro entre pequenas cochiladas. Algumas palavras ríspidas causaram uma discussão calorosa e lacrimosa até a estação Santos-Imigrantes. Até Ana Rosa, faziam as pazes em beijos calorosos. Até que ela virou a cara de novo. A situação ficou crítica, visto que o moço já ia descer no Paraíso, próxima estação. Tentaram de tudo, mas é como se falassem línguas diferentes e o tempo se esgotando naqueles poucos metros, sem tempo de parada para aguardar a movimentação do trem a frente. Ele desce e ela chora até a Consolação, na falta de um trocadilho pior pra fazer.

 

Da sala de aula

De Vagar

Não tenho mais pressa. Nem espero mais amor, quiçá até das ligações eu desisti. Espero momentos. Torço por pequenas pílulas aonde tempo e espaço são meros conceitos superados e distantes, diminutos perante a luminosidade dessa brecha milagrosa. Lugares e situações praticamente hipotéticas que, não fossem as marcas no corpo ou espalhadas pela casa, poderiam até ser irreais. Sonhos, escapes inconscientes da mente cansada.

Não é ele. Também não é você. Em alguns momentos acho que não sou nem eu. São as emoções. O frio na barriga, nos momentos bons o arrepio, o calor. Nos comuns, a decepção. A inevitável e invisível presença do depois. De repente, o amor não me pertence mais. Vai o amor. Vão os rostos e mais rápido ainda o conteúdo dos copos. Ah, os copos. Vai-se o conteúdo, ficam sempre os copos. Vai o amor, vão-se os momentos, acabam os cigarros. Mas os copos… Ah, os copos…

Mesa de bar

Garçom, por favor enche esse copo. Enche que hoje eu quero ficar aqui. Não precisa trazer dois. Não, é isso mesmo. Hoje não vem ninguém. Somos apenas eu, você, essa mesa dobrável, os azuleijos sujos do banheiro e meu copo.

Peraí, não precisa me olhar com essa cara condescendente. Fique tranquilo, hoje essas paredes repletas de quadros amarelados e pó vão me acobertar enquanto eu e minha cabeça – que pesa o mundo – ficamos aqui vendo o tempo passar.

É isso mesmo que você entendeu. Acordei com uma ressaca dos diabos e o firme propósito de assistir o tempo passar.Ô, mas é claro que dá. Se não der, não tem problema, a gente sabe que ele passa mesmo assim. Faz essa cara não, já estive bem mais louco. Só que hoje eu acho que esses guardanapos (aliás, já reparou que guardanapo de boteco não limpa nada?) vão ser uma melhor companhia do que essa gente safada que tem por aí.

Hoje eu não quero ouvir fofocas, não quero saber se foi pênalti ou não nem gastar saliva com gente que vem hoje pra ir embora amanhã sem deixar rastros.

Vou torcer pro rádio tocar uma música boa, fazer um brinde com a minha garrafa, pra cerveja não faltar, sentar com meus fantasmas e lembrar pra sempre desse dia.

Agora, seu garçom, o senhor me dê licença faz favor que o senhor já tá atrapalhando meus planos com tanta pergunta.